- Tá, mas o que você fez de bom enquanto tava viva?
- Ah eu... Estudava, trabalhava... ganhava minha grana...
- Não... tá bom. - Aí ele arruma o óculos na cara como quem já perdeu a paciência, mas não quer falar. Dá um suspiro profundo enquanto ela percebe que lentamente os pelos do braço dele se arrepiam.
- Vou tentar de novo.
- Mas como assim?
- E no social? Gostava de alguém? Tinha muitos amigos? Essas coisas...
- Ah, eu tinha uma galera né...
- Acha que algum deles lembra de você?
- Ai...
- Tá bom, tá bom. Precisa mais falar nada não.
Ele assina um papel, aponta uma porta.
- Que porta é aquela?
- Ah... É o seu paraíso pessoal.
- Como assim?
- Entra lá e olha, porra. - É. ele claramente já tinha perdido a paciência... mas não era nem com ela. Era com essa cara de ingênua, esse micro-vestido e essa maquiagem borrada, ou talvez seja porque ela não sabe dizer direito se era ou não uma pessoa boa enquanto estava por aqui... Vai lá saber.
O próximo era esquisitão, devo mencionar. Baixo, negro, com esse aspecto esquisito e esse jeito torto de andar. A pele do rosto queimada pelo sol (ou sabe-se lá o quê) contrastando com as olheiras profundas e um olhar perdido, como quem acabou de morrer e ainda não descobriu.
- Senta aí, filho.
- Oi.
- Que cara é essa? Tava fazendo o quê quando te pegaram?
- Como assim?
- Você morreu, filho. Será que te enganaram de novo?
- Morri? Caralho. - E a expressão nos olhos dele eram de verdadeira surpresa, mas um leve sorriso se abriu pouco depois daquela segunda piscada. Os olhos brilharam, e do bolso ele tirou aquela carteira com os dois últimos cigarros, o molho de chaves e uma lembrança que preferiu ignorar.
- Mas como assim eu morri?
- Bem... - O cara arruma o óculos e lê ali num papel qualquer coisa escrita, não li, não faço a mínima do que seja.
- Aconteceu acho que ontem a noite, quando você achou que tava sonhando e não tava. Alguma coisa assim. Mas que bom que não doeu, né filho?
- Que bom, né? Pode fumar aqui?
- Poder não pode, mas se isso te deixar menos travado pra conversar direito comigo.
- Se pá.
- Mas que porra é essa? "se pá"? Essa geração sua não sabe mais falar.
- Talvez.
- Talvez o quê?
- Talvez... se pá... mesma coisa.
- Ahhh sim.... - Ele tosse - Mas sem soprar na minha cara.
- Beleza.
- Mas você não ia durar muito mesmo. Seus hábitos foram muito... Qual é a palavra?
- Escrotos.
- É...não... aliás. Pode. Pode ser. Você devia ter se cuidado mais, filho.
- Eu também acho.
- Não quer dizer nada? Não se arrepende de nada... Nada não? Tá conformado mesmo?
- Até que sim.
Silêncio.
E aí o cara levanta, dá uma caminhada em volta da sala. Olha fixamente pro casaco preto, pra pele negra e pros leves tremores que o rapaz vez ou outra expressava.
- E como você se divertia, filhão?
- Posso fazer uma pergunta antes?
- Pode, claro.
- Por que você tá me chamando de filhão?
- Só um jeito menos hostil de tratar pessoas como você.
- Como eu? Como assim?
-Sensíveis.
- Ah...
- Não era isso que você dizia?
- As vezes.
- Entendo... E as pessoas?
- Que pessoas?
- As pessoas que você conhecia. As melhores, digamos assim. Eram muitas?
- Algumas...
-Gostava de muitas pessoas?
- Algumas.
- Conhecia essa que acabou de entrar ali?
- Não.
- Bom... Bom demais.
- Por que?
- Pra saber.
- Posso fazer duas perguntas?
- Pode, claro. E não precisa me perguntar, só faz.
- Quem é você, e por que você está me fazendo essas perguntas?
- Eu sou você, amanhã.
- Mas eu morri.
- Quase.
- Hm... Tô vivo ainda?
- Quase... E deu, já.
- O quê?
E aí o cara fecha o caderno, olha bem nos olhos do rapaz. Dá um sorriso de leve, puxa aquele mesmo cigarro do bolso e diz:
- Felizmente você tem duas portas. Aquela ali, ou aquela ali.
- Mas como assim?
- Escolhe uma e entra.
- Massa.
E aí repentinamente você acorda no outro dia, 09:41am, chuva de sempre, silêncio de sempre.