A noite escura da praça era convidativa, chamativa e mais uma série de adjetivos que não se pode dizer por aí sem antes estar num estado de embriaguez onde palavras e sinceridade são sinônimos. E é até engraçado, porque naquela altura da noite as mãos dadas eram como um elo entre a vida e a morte, as idéias insanas de um jovem louco e as idéias insanas de uma menina transparente. Os sorrisos se sintonizavam, a grama da praça brilhava com o toque leve do orvalho. A madrugada tornava-se dia, e os dois andavam de mãos dadas.
Ele com as pupilas dilatadas e um sorriso idiota no rosto, ela com o corpo frio e com a mente funcionando a mil por hora, pensando em declarações e circunstâncias, na insanidade que nunca havia experimentado antes.
E pararam ali no banco na frente da igreja. Ele olhava atento a tudo que acontecia em volta, mesmo que nada estivesse acontecendo e puxou mais um daqueles cigarros que costuma fumar quando ninguém vê. Ela apenas observa-o em seu comportamento subversivo, e imagina o que seria dele se ela não estivesse ali. Ele traga, prende, solta a fumaça para cima e pergunta calmamente à menina: "O que seria de você se eu não estivesse aqui?"
Ambos riem. A madrugada torna-se cada vez mais silenciosa e os dois sentam-se um ao lado do outro no banco na frente da igreja. Dividem uma maçã e pensamentos que não costumam dividir um com o outro. Ela diz que não acredita em Deus, ela cita músicas, livros e conceitos em que acredita. Ela olha para as pupilas dilatadas do rapaz e se pergunta se ele está identificando a voz dela. Ele dá mais uma tragada naquele cigarro e corresponde todos os pensamentos, medos, idéias e heresias que vem dela. Ela sorri. Ele sorri um sorriso encantadoramente medonho e então ela dá mais uma mordida na maçã e oferece à ele.
Ele então aceita, e tira da mochila surrada uma garrafa d'água. Ele abre e dá mais uns goles, mas prefere deixar que ela beba daquela água que ele pegou numa nascente há muitos quilômetros dali... Ela dá goles generosos e sorri novamente um sorriso de gratidão.
Ele então pega a carteira perdida dentro da mochila e tira de dentro dela mais um daqueles papéis que acompanhavam-no aonde quer que fosse. Ela olha tudo aquilo e se pergunta se seria aquilo genialidade ou mais um ato de insanidade. Ela olha atentamente a figura do rapaz levando mais uma vez um daqueles papéis à boca. Os olhos brilhavam, a madrugada se despedia dos dois, e ele olhou atento aos olhos claros e cabelo loiro da menina. Os tênis iguais, os casacos iguais, as idéias iguais, os estilos de vida tão diferentemente geniais e mais alguns goles da garrafa d'água embalaram o resto de noite das duas figuras tão ironicamente completas que partilhavam do silêncio na frente de uma igreja. Instituição que não passava de uma construção como outra qualquer, mas que tinha tanto impacto sobre a sociedade. E os dois não entendiam isso, mas preferiam se preocupar com outras coisas.
Ele então começa a falar sobre meditação, natureza, psicologia, música e sobre os sentimentos estranhos de amor e de felicidade que começara a sentir a horas atrás. Recitava poemas sobre o universo, o sol, as plantas, olhava no fundo dos olhos claros da menina e sorria. Simplesmente sorria e continuava cantando essa velha canção que, no fundo, os dois conheciam e sabiam de cor.
Ela falava sobre números, livros, sobre aventuras, ela arrumava os óculos no rosto, ela dizia que não precisava disso, ele não dava ouvidos... Ele só queria estar com ela.
No fundo, Ela só queria estar com ele.
E quando o sol já nascia, ambos falavam sobre equilíbrio. Ela com os olhos claros e serenos como o novo dia que nascia, ele com os olhos negros como a noite que passara. Ela dizia coisa sobre o amor, ele dizia coisas sobre o equilíbrio, dava mais algumas tragadas naquele cigarro que preparou manualmente horas atrás... Ela sorria um sorriso de compaixão, Ele sorria um sorriso de sinceridade e os dois beijavam-se como se aquele beijo fosse a chave para um paraíso particular, onde os dois seriam apenas dois.
Ele olha aquela tatuagem dela, que forma um X no pulso. Ela olha os olhos negros dele, que brilham refletindo a luz do sol.
Ela era o dia, Ele era a noite. Eles se abraçam, eles se completam, eles caminham pela manhã como dois universos se tornando apenas um.